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As Diversas Graduações
da Visão Clara


Por
Ajaan Brahmavamso

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Meditação é o caminho para a renúncia. Primeiro você renuncia a todas as percepções de tempo para entrar no momento presente que é atemporal. Aí você abandona o diálogo interno para ficar tranquilamente no estado de atenção silenciosa. Em seguida, você abandona a maior parte da atividade dos seus cinco sentidos só mantendo a atenção na sua respiração. Depois você abandona a sua respiração e fica observando o seu desaparecimento.

Nesse estágio, você não pode mais ver, ouvir, sentir, degustar ou sentir o tato. Parece que o seu corpo desapareceu e no seu lugar você está ciente de uma linda luz, o nimitta. O nimitta é um reflexo da citta, (mente), vista através do sexto meio dos sentidos. Daí você abandona todo o controle para ser absorvido pela luz e entrar no êxtase do mundo do jhana. Assim, os jhanas acontecem automaticamente quando você realmente renuncia; eles são descritos como estados profundos de renúncia, abandono.

O Buda, repetidas vezes e de modo muito claro, afirmou que a plena iluminação não pode ser alcançada sem a experiência dos jhanas. No entanto, na atualidade, alguns mestres afirmam que o grau de desapego proporcionado pelos jhanas é desnecessário. Com freqüência, o Bahiya Sutta (Udana I.10), é mencionado como evidência disso. Bahiya não era um bhikkhu. O sutta não registra que ele praticasse a generosidade, ou que tivesse tomado refúgio na jóia tríplice, ou que observasse os preceitos de virtude. Além disso, o sutta não dá nenhuma indicação de que Bahiya praticasse a meditação, quanto mais experimentar os jhanas. No entanto, depois de receber um breve ensinamento do Buda, Bahiya se iluminou tornando-se um arahant, numa questão de segundos!

Este episódio é bem conhecido nos círculos Budistas porque dá a impressão que a iluminação é tão fácil. Parece que não é necessário ordenar-se como bhikkhu, que a pessoa pode ser egoísta e não praticar a generosidade, que não é necessário tomar refúgio ou observar os preceitos e que até mesmo a meditação pode ser evitada! Que alívio! Só a inteligência é necessária. (Todos sabemos que somos inteligentes, não é mesmo?). Isso torna a realização de Bahiya atraente e notória.

Então, qual foi o contexto desse ensinamento? Aqui vai a minha própria tradução:

Bahiya, você deveria se treinar assim: no visto haverá somente o visto; no ouvido haverá somente o ouvido; no sentido [1] haverá somente o sentido; no conscientizado haverá somente o conscientizado. Praticando desta maneira, Bahiya, você não será “por causa disso”. Quando você não é “por causa disso”, você não está “nisso”. E quando você não está “nisso”, então, você não estará nem aqui, nem além, nem entre os dois. Exatamente isso é o fim do sofrimento.

E então Bahiya se tornou iluminado. Parece fácil, não é? Você acabou de ler o mesmo ensinamento. Você conseguiu se iluminar? Não?! Porque não?

Como ocorre com freqüência, a história do sutta registra apenas os pontos principais de um longo episódio. Da mesma forma que as fotos de um casamento não registram o primeiro encontro, o namoro, as brigas e discussões, muitos suttas não registram tudo o que aconteceu antes. Então qual é a história completa de Bahiya? Como podemos encaixar o final, retratado para a posteridade neste sutta, no seu contexto apropriado? Felizmente, toda a história está registrada no Apadana (histórias dos Budas e dos seus principais discípulos) e nos comentários.

Numa de suas vidas passadas, Bahiya havia sido um bhikkhu sob o Buda Kassapa. Ele e mais seis outros bhikkhus escalaram uma montanha íngreme e jogaram a escada fora, determinados a permanecer no topo da montanha até que alcançassem a iluminação ou morressem. Um dos bhikkhus se tornou uma arahant, outro um anagami e os cinco restantes morreram na montanha sendo que Bahiya era um desses cinco. Na sua última vida, Bahiya havia sido um marinheiro muito viajado e que acabou naufragando e alcançando a terra firme tendo perdido todas as suas posses e roupas. Ele se vestiu com cascas de árvores e passou a esmolar alimentos numa cidade chamada Supparaka. As pessoas da cidade ficaram impressionadas com a aparência e modos de Bahiya oferecendo-lhe um modo de vida confortável, e assim ele não regressou ao seu ofício de marinheiro. As pessoas consideravam Bahiya um arahant e Bahiya pensava da mesma forma.

Nesse ponto um deva se deu conta do que Bahiya pensava e por compaixão o repreendeu. Esse deva era o seu antigo companheiro na montanha que havia falecido como um anagami. Ele relatou a Bahiya que havia um verdadeiro arahant, o Buda, que se encontrava no outro lado da Índia, em Savatthi. De imediato Bahiya saiu de Supparaka, (Sopara na atualidade, situada ao norte de Mumbai), levando uma noite para chegar em Savatthi.

Bahiya encontrou o Buda, que estava esmolando alimentos, e pediu que ele lhe desse um ensinamento. O Buda primeiramente se recusou, pois ele vinha numa hora não apropriada. Mas ao ouvir o pedido pela terceira vez, o Buda interrompeu a esmola de alimentos e deu o famoso ensinamento que apresentei acima. Segundos depois de ouvir esse Dhamma, Bahiya se iluminou. Alguns minutos mais tarde, o arahant Bahiya foi morto por uma vaca com seu bezerro.

Portanto, as circunstâncias de Bahiya eram excepcionais. Ele havia sido um bhikkhu sob o Buda anterior, Kassapa. A sua determinação era tão forte que ele foi para a montanha com o objetivo de se iluminar ou morrer. Na sua última vida ele podia ouvir os devas e foi capaz de percorrer cerca de 1.300 km numa noite. Se tivéssemos uma história como esta e os mesmos poderes supra-humanos de Bahiya, então talvez só de ler o discurso estaríamos iluminados também.

Usualmente, uma pessoa necessita de samadhi produndo – jhanas - para atingir poderes supra-humanos como esses. Levando-se em conta a sua vida passada, seguramente Bahiya deve ter tido uma predisposição para a meditação. Além disso, ambos os poderes supra-humanos, do “ouvido divino”, que o capacitou a ouvir o deva, e o outro que fez com que ele viajasse tão rápido, sugerem ter ele sido praticante de jhana antes de ouvir o deva. Talvez essa fosse uma outra razão porque ele se considerava um arahant. Mas há outras evidências que sugerem que Bahiya praticava os jhanas, embora isso não esteja mencionado nos textos.

Poucas pessoas sabem que o mesmo ensinamento deste sutta também foi dado pelo Buda para o bhikkhu ancião Malunkyaputta, (SN XXXV.95). Malunkyaputta aparece várias vezes nos suttas. Particularmente no MN 64, que com certeza relata um evento anterior ao que Malunkyaputta recebeu o ensinamento igual ao de Bahiya. O Buda primeiro menospreza Malunkyaputta pelo seu entendimento incorreto e aí o ensina sobre a necessidade de atingir pelo menos um dos jhanas para destruir os cinco primeiros grilhões [2] (e assim, atingir o nível daquele que não retorna). O Buda disse na frente do Malunkyaputta que era impossível atingir o nível de anagami (quanto mais a iluminação completa), sem um jhana, assim como era impossível alcançar o cerne de uma árvore sem primeiro passar por sua casca e pelo alburno. Pense nisso.

Assim, o Venerável Malunkyaputta foi primeiro ensinado sobre a necessidade de jhana e então mais tarde ele recebeu o ensinamento igual ao de Bahiya. Depois de ouvir esse ensinamento, “permanecendo só, isolado, diligente, ardente e decidido,” Malunkyaputta logo se tornou um arahant. É certo, no entanto, que ele atingiu jhana antes que o ensinamento de Bahiya pudesse ter seus efeitos ou o Buda teria sido flagrantemente inconsistente. Isso também adiciona peso à inferência de que Bahiya teria também experiência em jhana antes de ter ouvido o mesmo ensinamento – pois do contrário ele teria atingido o cerne da árvore sem passar pela sua casca e alburno!

Distorcendo o Entendimento

Então, o que fez Bahiya e Malunkyaputta verem nas palavras do Buda que gerou a experiência de arahant? Qual é o significado de “no ver haverá somente o visto”?

Isso quer dizer ver sem nenhuma distorção dos dados, sem adicionar ou subtrair nada. Como a moderna psicologia entende, o que chega até nós como “o visto” já foi filtrado e distorcido pelos nossos desejos e aversões. Esse processo de distorção ocorre antes do evento da cognição. É impossível ver esse processo enquanto ele ocorre. É subconsciente. Podemos apenas inferir a sua ocorrência: descobrimos que as nossas preferências embelezaram os dados para apresentar para a nossa mente o que nós queremos ver, enquanto a hostilidade negou qualquer acesso para a mente daquelas características que nós não queremos ver. O que nós vemos raramente é puramente o visto. Aquilo que nós vemos com a assim chamada atenção plena, não baseada no jhana, quase nunca é a verdade. Não é como as coisas são; é só como as coisas parecem ser.

Nós deveríamos ser suficientemente experientes para saber isso. Quando vocês homens vêem uma mulher bonita, o que é que vocês vêem? A maioria das pessoas, mesmo os bhikkhus, não vêem o que está ali realmente – só músculo, tendões, pele e cabelo – eles vêem, ao invés disso, uma mulher atraente. De onde vem isso? Nosso desejo sexual adicionou isso, distorcendo a realidade. Quando você vê o corpo recém-falecido da sua mãe, o que você vê? Novamente, você não vê o que está ali na verdade – só músculo, tendões, pele e cabelo. Ao invés disso, você vê uma tragédia, porque o seu apego adicionou uma profunda tristeza, distorcendo a realidade.

No nordeste da Tailândia, há muitos anos atrás, nos monastérios pobres no meio de florestas isoladas, eu tive de comer gafanhotos, sapos, formigas e outros insetos rastejantes. Isso era tudo que havia para comer. Um prato comum era guisado de ovo de formiga. Quando você ler isso agora, você estará praticando “no visto haverá apenas o visto” ou você acrescentou seu próprio nojo? Gafanhotos fritos eram na verdade muito apetitosos. Quanto dos nossos próprios gostos e desgostos nós adicionamos ao visto?

Vinte e cinco séculos antes da moderna psicologia o Buda identificou o processo que distorce a cognição e chamou-a de vipallasa.[3] Ele explicou esse processo essencialmente circular começando do nosso entendimento. Nossas opiniões modificam as nossas percepções para concordarem com as nossas idéias. As percepções então formam a evidência para os nossos pensamentos. Aí os nossos pensamentos argumentam em favor das nossas idéias. É um ciclo que se auto-justifica. Idéias geram percepções que criam pensamentos que apóiam as idéias. Esse é exatamente o processo da delusão.

Por exemplo, alguém acredita em Deus. Ela tem uma concepção teísta. Essa concepção nega acesso para a mente de qualquer percepção que desafie essa concepção. Fatos científicos, como aqueles dos campos da astrofísica, física quântica, geologia e bioquímica, se tornam percepções sem acesso. Elas são rejeitadas antes mesmo de entrar na consciência porque elas são antiéticas para a concepção. Somente percepções que apóiem e se harmonizem com a concepção de Deus sobrevivem ao processo de filtração subconsciente. Essas percepções pró-Deus então formam os dados com os quais os nossos pensamentos trabalharão. Os dados são convincentes; eles confirmam as nossas concepções. Nós nos tornamos convencidos de que existe um Deus e nossa opinião fica cada vez mais resistente à contestação. Assim é a origem e progresso de muitas religiões, que estão completamente convencidas de que elas estão certas. Elas tomam erroneamente as coisas como elas parecem ser por como elas são.

Ou tome o debate sobre o aborto. Você é “pró-vida” ou “pró-escolha”? Qualquer uma dessas duas idéias corromperá a sua percepção através da seleção das percepções que apoiarão a sua idéia cegando a sua consciência para quaisquer outras percepções que a contestem. Seu pensamento será construído a partir das suas percepções, da mesma maneira que uma casa é construída de tijolos. Esse pensamento mal informado justifica sua idéia tão poderosamente que você simplesmente não pode entender porque todas as demais pessoas não vêem isso de modo correto, que é o seu modo!

Um último exemplo: Pergunte-se se a meditação é fácil para você. Se você pensar que meditação é difícil, e você estiver muito apegado a essa idéia, então meditação parecerá difícil. De onde vem essa opinião? Talvez, há muito tempo atrás, alguém com autoridade falou para você que meditação era difícil e você acreditou. Infelizmente, essa opinião permaneceu. Ou talvez, você começou a meditar sem uma instrução clara e precisa e daí você passou a achá-la difícil. Com base numa experiência limitada você formou uma opinião sólida, meditação é sempre difícil. E apesar disso, essa opinião surgiu, e uma vez lá, ela faz com que a meditação seja difícil! Seu apego a essa opinião distorce as suas percepções. As únicas percepções que acabam se tornando conscientes são aquelas que percebem as dificuldades da meditação. Baseado nessas percepções negativas, você pensa que meditação é de fato difícil. Você, e somente você, fez a meditação se tornar difícil!

Quando nós temos algum entendimento do que está acontecendo, nós temos a possibilidade de mudar essa opinião a respeito da meditação. Permita-me fazer uma lavagem cerebral em você! Deixe-me convencê-lo de que, apesar de quem disse o que, apesar de toda a sua falta de sucesso, MEDITAÇÃO É FÁCIL! MEDITAÇÃO É FÁCIL! Deixe-me fazê-lo acreditar que você pode meditar bem. Nesta vida você renasceu com um corpo humano precioso e está agora lendo os ensinamentos do Budismo, que não têm preço. Você está vivendo numa época em que o Dhamma está prosperando e você foi capaz de encontrar esse Dhamma maravilhoso. Você é um ser muito raro. Você trabalhou durante muitas vidas para ter uma oportunidade como essa. Com tantas coisas passadas a seu favor, é claro que você será capaz de meditar bem. O fato de você estar lendo isto prova que você tem um enorme estoque de kamma bom apoiando-o. Outras pessoas, muito menos capazes do que você atingiram jhana, então por que não você! Uma vez que você tenha criado uma opinião positiva da sua habilidade para a meditação – rapidamente – você perceberá só sucesso na meditação. Você acabou de tornar a meditação uma coisa fácil! Você abriu a porta para a tranqüilidade, felicidade interior e para os jhanas. Tente!

Descobrindo a Verdade

O ponto é que a idéia de que meditação é difícil para você ou que a meditação é fácil são ambas erradas. Elas são o produto de uma distorção daquilo que é visto, ouvido, sentido e conscientizado.

Ambas são delusão. Só que a idéia positiva é a delusão mais proveitosa. Na realidade, é a idéia que o levará a descobrir a verdade.

O Buda explicou que são os cinco obstáculos que distorcem a percepção e corrompem o nosso pensamento. Ele chamou de cinco obstáculos a comida que alimenta a delusão (AN X.61). O primeiro obstáculo, desejo sensual, seleciona o que nós queremos ver, ouvir, sentir e conscientizar. Ele sempre embeleza a verdade. Ele apresenta para a nossa consciência o produto do nosso desejo. O segundo obstáculo, má vontade, é o impulso negativo que nos impede de ver, ouvir, sentir ou conscientizar o que nós não queremos saber. Ele nos cega para o que é desagradável e para o que é contrário à nossa opinião. A psicologia conhece o segundo obstáculo como o processo de negação da realidade. O terceiro obstáculo é a preguiça e o torpor. Esse não distorce o que vemos, ouvimos, sentimos ou conscientizamos; ao invés, ele enterra tudo num nevoeiro de modo que somos incapazes de discernir claramente. O quarto obstáculo, inquietação e ansiedade, mantém os nossos sentidos se movendo rapidamente, tão rápido que não temos tempo suficiente para ver, ouvir, sentir ou conscientizar completamente. A visão não tem tempo de se formar completamente na nossa retina, pois ela já tem uma outra imagem no seu background com a qual lidar. Os sons são escutados com dificuldade quando nos pedem para escutarmos algo. O quarto obstáculo, inquietação e o seu caso especial, ansiedade, (inquietação interior devido a uma má conduta), é como o chefe ultra-exigente no seu escritório, que nunca lhe dá tempo suficiente para terminar um projeto adequadamente. O quinto obstáculo, dúvida, é aquele que interrompe a coleta de dados com perguntas prematuras. Antes que tenhamos experienciado completamente o visto, o ouvido, o sentido ou o conscientizado, a dúvida interfere no processo, como um estudante arrogante interrompe o professor com uma pergunta no meio de uma palestra. São esses 5 obstáculos que distorcem a percepção, corrompem o pensamento e mantêm a opinião deludida.

É bem conhecido entre os estudantes sérios do Budismo que a única maneira de suprimir os cinco obstáculos é através da prática de jhana. Como o Nalakapana Sutta (MN68) diz, para aqueles que não atingem jhana, os cinco obstáculos (mais descontentamento e cansaço) invadem a mente e permanecem. Qualquer coisa que não for jhana não será poderosa e duradoura o suficiente para suprimir os cinco obstáculos adequadamente. Portanto, mesmo que você esteja praticando atenção plena momentânea, se os cinco obstáculos ainda estiverem ativos num nível subconsciente, você não verá as coisas como elas são na verdade; você estará vendo apenas as coisas como elas parecem ser, distorcidas por esses cinco obstáculos.

Assim, para agir de acordo com os ensinamentos do Buda para Bahiya e para o venerável Malunkyaputta, para que “no visto haja só o que é visto, no ouvido haja só o que é ouvido, no sentido haja só o que é sentido e no conscientizado haja só o que é conscientizado”, os cinco obstáculos têm que ser suprimidos e isso significa jhana!

Vendo as Coisas como Elas São Na Realidade

É verdade que os cinco obstáculos são suprimidos no momento que precede o jhana, os comentários chamam-no de upacara samadhi, “imobilidade da mente que está para entrar em jhana” (tradução do Ajahn Brahm). Então, como é que você pode saber com certeza que esses insidiosos cinco obstáculos, que geralmente operam no nível subconsciente, estão totalmente suprimidos? Como é que você sabe que está em upacara samadhi? O teste decisivo é que você pode passar sem esforço nenhum da entrada para o primeiro jhana. Em upacara samadhi, não existe nenhum impedimento ou obstáculo entre você e o jhana. Se você não puder entrar em jhana, os cinco obstáculos ainda estão presentes. Portanto, para ter certeza que eles se foram, você tenta entrar em jhana e entra.

Quando a mente emergir do jhana, ela fica em upacara samadhi por um longo período, como quando você sai de casa, você fica na porta outra vez. É nesse ponto, durante o período imediatamente depois da experiência do jhana, quando os cinco obstáculos ainda não invadiram a mente, que a pessoa é capaz de finalmente praticar “no visto há apenas o visto, no ouvido há apenas o ouvido, no sentido há apenas o sentido e no conscientizado há apenas o conscientizado”. Como o Buda disse repetidamente, (por exemplo, no AN VI.50), só como resultado do jhana, (samma samadhi), é que uma pessoa vê as coisas como elas são (yatha-bhuta-ñanadassanam) e não como elas parecem ser.

O Fim da Idéia da Existência de um Eu

Uma experiência de jhana pode desmontar uma pessoa. O que eu quero dizer com isso? Quero dizer que a informação proporcionada pela experiência de jhana, contemplada imediatamente depois, em upacara samadhi, quando os obstáculos não podem distorcer nada, destrói a delusão do eu, alma e meu.

No primeiro jhana na maioria das vezes, e nos jhanas mais elevados completamente, a capacidade de fazer, de exercer a vontade e de fazer escolhas – o que eu chamo de “o fazedor” – desapareceu. Falando de uma maneira bem simples, a informação é tão clara e os cinco obstáculos não são mais capazes de fazer com que você não veja que não existe uma pessoa controlando o seu corpo e mente. Vontade não é o eu ou um produto do eu. Vontade é só um processo natural impessoal que pode chegar à cessação total. Você viu isso por você mesmo, e pode confiar nisso porque isso tudo ocorreu quando os cinco obstáculos, que distorcem, estavam suprimidos. Esse insight é o mais correto que você já teve: livre-arbítrio é uma delusão. Você, o leitor, será incapaz de concordar comigo. Isso porque os seus cinco obstáculos ainda estão ativos e eles farão com que você não enxergue isso. Portanto, experiencie um jhana primeiro, aí investigue esse assunto logo em seguida. Aí, tente discutir comigo! Além disso, em jhana - o verdadeiro, não os falsos - a visão, a audição e os sentidos desaparecem. Os cinco sentidos externos cessam. Essa informação também é clara. Quando a pessoa reflete na completa ausência dos cinco sentidos durante a experiência de jhana, no estado livre dos obstáculos do pós-jhana upacara samadhi, ela verá com certeza que não existe o eu, ou alma, ou o meu eu observando a visão, ouvindo os sons ou sentindo cheiros, sabores e toques. Não existe nenhum eu, alma ou meu eu compreendendo o que foi compreendido. Todas as formas de consciência são também como um processo impessoal que pode chegar a uma completa cessação. Em resumo, você não é o mesmo que a sua mente. A mente é apenas um processo natural. Ela pode parar completamente. Ela realmente pára, de uma vez para sempre em parinibbana!

Uma vez mais, você, meu leitor, será incapaz de concordar comigo. Os cinco obstáculos, que agora estão ativos dentro de você, sob a superfície da conscientização, impedem-no de ver a verdade. Uma experiência de jhana desafia o seu entendimento mais básico, o entendimento de que “Você é”! Não se preocupe com esses desentendimentos por enquanto. Ao invés disso, medite até que você tenha experienciado jhana e tenha suprimido os cinco obstáculos. Então, veja se tenho razão ou não!

A Parte Final do Ensinamento para Bahiya

"Bahiya, você deve treinar assim: Com relação ao que é visto, haverá apenas o visto.... Com relação ao que é conscientizado, haverá apenas o conscientizado. Practicando dessa maneira, Bahiya, você não será “por causa disso”. Quando você não é “por causa disso”, você não está “nisso”. E quando você não está “nisso”, então, você não estará nem aqui nem lá, nem no meio. Isso é o fim do sofrimento."

O que significa, “você não será ‘por causa disso’? Em Pali é na tena. Tena é a palavra chave para “isso”. Na é a forma negativa. Significa, literalmente, “não por causa disso, não através disso, não por isso.” Significa, em essência, que você não assumirá que existe um eu, uma alma ou um meu eu só por que existe o ver, ouvir, cheirar, degustar, tocar, (sentir), ou conscientizar. O Buda estava dizendo que uma vez que você tenha penetrado a verdade da experiência sensorial, através da supressão dos obstáculos no jhana, você verá que não existe o “fazedor” ou “sabedor” por trás da experiência sensorial. Você não será mais capaz de usar a experiência sensorial como evidência para um eu. A famosa frase de Descartes “Eu sou por que eu penso” é refutada. Você não será por causa do pensamento ou por causa do ver, do ouvir ou do sentir. Nas palavras do Buda, “Você não será por causa disso (qualquer experiência dos sentidos).”

Quando os processos sensoriais são descartados como evidência defensável para a existência de um eu, uma alma ou meu eu, então você não estará localizado na experiência sensorial. Nas palavras do Buda, “Você não estará ‘nisso.’’ Você não verá mais, considerará, perceberá ou mesmo pensará que existe um “eu” envolvido na vida. Usando as palavras do médico, na versão original do seriado Star Trek, “É vida, Jim, mas não como nós a conhecemos!” Não existirá mais qualquer percepção de um eu ou alma no centro da experiência. Você não estará mais “nisso”.

Para fechar a abertura que poderia deixar você pensando que pode escapar da inexistência de um eu ou alma através da identificação com um estado transcendental de ser além do que é visto, ouvido, sentido ou conscientizado, o Buda bramiu, “e você não estará nem aqui (com o visto, ouvido, sentido ou conscientizado), nem além (fora do visto, ouvido, sentido ou conscientizado), nem entre os dois” (em nenhum mundo, nem além do mundo). A última frase confundiu os sofistas!

Em resumo, o Buda aconselhou ambos, Bahiya e o venerável Malunkyaputta a experienciar o jhana para suprimir os cinco obstáculos.

Só deste modo a pessoa pode discernir com certeza a ausência de um eu ou de uma alma por trás do processo sensorial. Consequentemente, a experiência sensorial não será mais tomada como evidência da existência do “fazedor” ou “sabedor”, de tal modo que você nunca mais voltará a imaginar um eu ou uma alma no centro da experiência, ou além dela, ou em algum outro lugar. O ensinamento para Bahiya formula de modo resumido o caminho para a realização do não-eu, anatta. Só isso, concluiu o Buda “é o fim do sofrimento.”

Conclusão

Espero que o meu argumento tenha sido forte o suficiente para desafiá-lo ou, mais do que isso, confundir as vipallasas que dirigem seus processos cognitivos. O ensinamento breve do Buda para Bahiya e para o venerável Malunkyaputta não é um atalho para os superinteligentes. A prática do “no visto haverá apenas o que é visto...” requer a supressão dos cinco obstáculos. A supressão dos cinco obstáculos requer jhana. Jhana requer o resto do nobre caminho óctuplo, os primeiros sete fatores. Ele requer fé na jóia triplice, a observação dos preceitos de virtude e a prática de dana. Existe apenas um caminho para nibbana, que é o nobre caminho óctuplo. Não existem atalhos.

Maggan' atthangiko settho ...
Eso'va maggo, natthi anno
Dassanassa visuddhiya

O melhor dos caminhos é o caminho óctuplo...
esse é o único Caminho.
Não existe nenhum outro,
para a purificação da visão.[4]

 


 Notas:

[1]Sentido: cheirar, sentir o sabor, sentir o toque. [Retorna]

[2] Os dez grilhões – samyojana. [Retorna]

[3] Veja o Vipallasa Sutta (AN IV.49). [Retorna]

[4] Dhammapada, versos 273 e 274 (Traduções para o Inglês do Ven. Narada). [Retorna]

Publicado na revista Buddhadharma, edição Fall 2006.

 

Source : http://www.acessoaoinsight.net

 
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