Cinco Amontoados de Tijolos |
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A iluminação do Buda proporcionou-lhe entre outras
coisas, um novo ponto de vista com relação aos usos e limitações das
palavras. Ele descobriu uma nova realidade – o Imortal – que não pode ser
descrita por palavras. Ao mesmo tempo, ele descobriu que o caminho para a
iluminação pode ser descrito, embora envolva uma nova maneira de ver
e conceituar o problema do sofrimento e estresse. Como os conceitos comuns
eram com freqüência meios pobres para ensinar o caminho, ele teve que
inventar novos conceitos e expandir palavras já existentes para abranger
esses conceitos de modo que outros pudessem experimentar a iluminação por si
mesmos.
Um dos novos conceitos, que é essencial dentro dos seus
ensinamentos, foi este dos khandhas, mais freqüentemente traduzido
para o Português como “agregados.” Antes do Buda, a palavra em Pali
khandha possuía significados bastante comuns: Um khandha podia ser uma
pilha, um maço, um amontoado, uma massa. Também poderia ser o tronco de uma
árvore. No seu primeiro sermão, no entanto, o Buda lhe deu um significado
novo, psicológico, introduzindo o termo “khandhas influenciados pelo apego”
para sumariar a sua análise da verdade do sofrimento e estresse. Ao longo do
restante da sua carreira de ensino, ele se referiu freqüentemente a esses
khandhas psicológicos. A sua importância nos seus ensinamentos, desde então,
tem sido óbvia para cada geração de Budistas. Menos óbvia, no entanto, é a
questão sobre como eles são importantes: Como um meditador deveria
fazer uso do conceito dos khandhas psicológicos? Quais questões eles
deveriam responder?
A resposta mais comum a essas questões é melhor
exemplificada através de dois livros acadêmicos recentes dedicados ao tema.
Ambos tratam os khandhas como a resposta do Buda à questão, “O que é uma
pessoa?” Citação da sobrecapa do primeiro:
“Se o Budismo nega um eu permanente, como é entendida a
individualidade? ... Aquilo que por convenção chamamos de uma pessoa pode
ser compreendido como os cinco agregados, cuja soma não deve ser tomada como
uma entidade permanente, visto que os seres não são nada mais que um
amálgama de fenômenos em constante mutação ... Sem o cabal entendimento dos
cinco agregados, não podemos compreender o processo de libertação em
operação dentro do indivíduo, que é, no final das contas, simplesmente um
amálgama dos cinco agregados.”
Citação da introdução do segundo:
“O terceiro
ensinamento chave é dado pelo Buda num contexto onde ele é perguntado acerca
da identidade individual: quando as pessoas querem saber ‘o que sou eu?’,
‘qual é o meu eu real?’. O Buda diz que a individualidade deve ser
compreendida como uma combinação de fenômenos que formam o contínuo físico e
mental de uma vida individual. Nesse contexto, o ser humano é analisado em
cinco componentes - os pañcakkhandha [cinco agregados].”
Esse entendimento dos khandhas não está confinado aos
acadêmicos. Quase todos os professores de meditação Budista modernos
explicariam os khandhas de forma semelhante. E essa não é uma inovação
moderna. Foi primeiro proposto no início da era Cristã nos comentários dos
antigos cânones Budistas – ambos, do Theravada e do Sarvastivada, que
formaram a base para o escolasticismo Mahayana.
No entanto, uma vez que os comentários empregaram os
khandhas para definir o que é uma pessoa, eles geraram muitas das
controvérsias que desde então têm atormentado o pensamento Budista: “Se uma
pessoa é apenas khandhas, então o que renasce?” “Se uma pessoa é apenas
khandhas, e os khandhas são aniquilados ao alcançar o nibbana total, então o
nibbana total não seria a aniquilação da pessoa?” “Se uma pessoa é khandhas,
e os khandhas estão inter-relacionados com outros khandhas, como é possível
que uma pessoa alcance nibbana sem arrastar consigo todas as demais
pessoas?”
Uma grande parte da história do pensamento Budista tem
sido a história de tentativas engenhosas mas infrutíferas de resolver essas
questões. É instrutivo observar, no entanto, que o cânone em Pali nunca
menciona o Buda tentando respondê-las. Na verdade, o cânone nunca menciona o
Buda tentando definir de maneira nenhuma o que é uma pessoa. Ao invés disso,
o cânone menciona o Buda dizendo que definir a si mesmo, de qualquer forma
que seja, é limitar a si mesmo e que a pergunta, “O que sou eu?” é melhor
ser ignorada. Isso sugere que ele formulou o conceito dos khandhas para
responder outras questões distintas. Se, como meditadores, queremos fazer o
melhor uso desse conceito, deveríamos procurar saber quais eram essas
questões originais e determinar como elas se aplicam à nossa prática.
O cânone retrata o Buda dizendo que ele apenas ensinava
dois tópicos: o sofrimento e o fim do sofrimento. Uma análise dos discursos
em Pali mostra ele empregando o conceito dos khandhas para responder a
questões básicas relacionadas com esses tópicos: O que é sofrimento? Como é
causado? O que pode ser feito para que essas causas tenham fim?
O Buda introduziu o conceito dos khandhas no seu primeiro
sermão em resposta à primeira dessas questões. A sua definição resumida do
sofrimento era “os cinco khandhas influenciados pelo apego.” Essa frase
críptica pode ser explicada recorrendo a outros trechos do cânone.
Os cinco khandhas são maços ou amontoados de forma,
sensações, percepções, formações e consciência. Nenhum dos textos explica
porque o Buda empregou a palavra khandha para descrever essas coisas. O
significado de “tronco de árvore” pode ser relevante para o simbolismo do
fogo, tão abundante no cânone – nibbana como a extinção dos fogos da cobiça,
raiva e delusão – mas nenhum dos textos faz essa conexão de modo explícito.
A imageria mais comum e explícita é dos khandhas como um incômodo. Podemos
imaginá-los como pilhas de tijolos que carregamos sobre os nossos ombros. No
entanto, essas pilhas são melhor compreendidas, não como objetos, mas como
atividades, pois um importante texto define-as em relação às suas funções.
Forma – que abrange todos os tipos de fenômenos físicos, dentro e fora do
corpo - está sujeita ao desgaste ou à “desforma.” A sensação sente prazer,
dor e nem prazer, nem dor. A percepção rotula ou identifica os objetos ou
fenômenos. A consciência realiza a cognição através dos seis sentidos,
(contando a mente como sendo o sexto), juntamente com os seus respectivos
objetos. Dos cinco khandhas, as formações são o mais complexo. Trechos do
cânone definem as formações como intenção, mas elas também incluem uma gama
variada de atividades, tais como a atenção, a avaliação e todos os processos
ativos da mente. Também é o khandha mais fundamental pois a sua atividade
principal é tomar o potencial das experiências da forma, sensações, etc.,
que provêm do passado e transformá-las na experiência tangível dessas coisas
no momento presente.
Então, a intenção é parte integrante da nossa experiência
de todos os khandhas – um ponto importante, pois isso significa que existe
um elemento de intenção como parte de todo sofrimento. Isso abre a
possibilidade de ser possível dar fim ao sofrimento mudando as nossas
intenções – ou abandonando-as por completo – que é precisamente o propósito
dos ensinamentos do Buda.
Para compreender como isso ocorre, temos que investigar
um pouco mais de perto como o sofrimento surge, ou, em outras palavras, como
os khandhas se tornam os khandhas influenciados pelo apego.
Quando os khandhas são experimentados, o processo das
formações em geral não pára simplesmente nisso. Se a atenção focar nas
características atrativas dos khandhas – formas belas, sensações prazerosas,
etc. – isso poderá dar origem à paixão e ao deleite. Essa paixão e deleite
podem assumir muitas formas, mas a mais tenaz é ação habitual de fabricar um
senso de eu ou meu, identificando-se com um khandha em particular, (ou
conjunto de khandhas), ou reivindicando a posse deste.
Essa noção de um eu e meu raramente é imóvel. Ela vagueia
como uma ameba, mudando de perfil à medida que muda de localidade. Algumas
vezes expandida, algumas vezes contraída, pode ver a si mesma como idêntica
ao khandha, como possuidora de um khandha, como existindo dentro de um
khandha, ou como tendo um khandha dentro de si. Em certas ocasiões,
sentindo-se finita, em outras, infinita, qualquer forma assumida será sempre
instável e insegura, pois os khandhas que proporcionam o seu alimento são
simplesmente atividades e funções, impermanentes e insubstanciais. De acordo
com as palavras do cânone, os khandhas são como a espuma, como uma miragem,
como as bolhas que se formam quando a chuva cai sobre a água. Os khandhas
são pesados só porque a empunhadura de ferro com a qual tentamos agarrá-los
é um incômodo. Enquanto estivermos viciados na paixão e no deleite por essas
atividades – enquanto nos apegarmos a elas, estaremos destinados ao
sofrimento.
A abordagem Budista para dar fim a esse apego, no
entanto, não é a de simplesmente abandoná-lo. Como ocorre com qualquer
vício, a mente tem que ser “desmamada” gradualmente. Antes que possamos
alcançar o ponto em que não há intenção, no qual estamos totalmente libertos
das fabricações dos khandhas, temos que mudar as nossas intenções em relação
aos khandhas para mudar as suas funções. Ao invés de usá-los com o propósito
de construir um eu, usamo-los com o propósito de criar um caminho para o fim
do sofrimento. Ao invés de carregarmos pilhas de tijolos sobre os nossos
ombros, nós retiramos essas pilhas dos nossos ombros e colocamos tudo no
chão como calçamento.
O primeiro passo neste processo é usar os khandhas para
construir os fatores do nobre caminho óctuplo. Por exemplo, a concentração
correta: nós mantemos a percepção estável focada num aspecto da forma, como
a respiração, e empregamos o pensamento aplicado e sustentado – que são
parte das formações – para criar sensações prazerosas e agradáveis que se
propagam pelo corpo. No início, é normal que experimentemos paixão e deleite
por essas sensações e que a consciência as acompanhe. Isso nos ajudará a
ficar totalmente ocupados em obter a maestria nas habilidades da
concentração.
Uma vez que tenhamos obtido a noção de força e bem estar
que provém da maestria dessas habilidades, podemos prosseguir para o segundo
passo: dar atenção às desvantagens, até mesmo, dos khandhas refinados que
experimentamos durante a concentração, para enfraquecer a paixão e deleite
que possamos sentir por eles: “Suponha que um
arqueiro ou aprendiz de arqueiro fosse praticar em um boneco de palha ou
monte de barro, de forma que após algum tempo ele fosse capaz de atirar a
longas distâncias, atirar com precisão uma série rápida, e de penetrar uma
grande massa. Da mesma forma, é o caso em que um bhikkhu ... entra e
permanece no primeiro jhana ... êxtase e prazer nascidos do afastamento. Ele
observa qualquer fenômeno que ocorra conectado com o corpo, sensações,
percepções, formações e consciência, como impermanente, sofrimento, uma
enfermidade, um câncer, uma flecha, doloroso, uma aflição, estranho, uma
dissolução, um vazio. (De forma semelhante com os outros níveis de jhana.)”
(AN IX.36)
As várias maneiras de estimular o desapego também são
khandhas, khandhas da percepção. Uma lista padrão inclui as seguintes:
percepção da impermanência, percepção do sofrimento, percepção do não-eu,
percepção do repulsivo, percepção das desvantagens, percepção do
desencantamento, percepção do desapego. Uma das percepções mais importantes
é aquela do não-eu. Quando o Buda apresentou pela primeira vez, no seu
segundo sermão, o conceito de não-eu, ele também empregou um meio para
fortalecer o impacto dele através de uma série de questões baseadas nos
khandhas. Tomando cada khandha, um após o outro, ele perguntou: “Isso é
permanente ou impermanente?” Impermanente. “E aquilo que é
impermanente é sofrimento ou felicidade??” Sofrimento. “E
é adequado considerar o que é impermanente, sofrimento, sujeito a mudanças
como: ‘Isso é meu. Isso sou eu. Isso é o meu eu’?” Não.
Essas questões mostram o papel complexo que os khandhas
desempenham neste segundo passo do caminho. Essas questões em si são
khandhas – das formações – e elas empregam o conceito dos khandhas para
desmontar qualquer paixão e deleite que possa estar centrado nos khandhas e
criar sofrimento. Desse modo, nesta etapa, empregamos khandhas que apontam
para as desvantagens dos khandhas.
Se forem empregadas de forma inábil, no entanto, essas
percepções e formações podem simplesmente substituir a paixão pelo seu
oposto, a aversão. É por isso que elas têm que estar baseadas no primeiro
passo – o bem estar construído no jhana – e acoplado ao terceiro passo, as
percepções do desapego e cessação que inclinam a mente na direção do
imortal: “Isto é a paz, isto é o sublime, isto é, o silenciar de todas as
formações, o abandono de todas as aquisições, a destruição do desejo;
desapego; cessação; Nibbana.” Esses são, na verdade, os khandhas da
percepção que direcionam a mente para além de todos os khandhas.
Os textos dizem que esse processo de três passos pode
conduzir a um dentre dois resultados. Se, depois de enfraquecer a cobiça
pelos khandhas, a mente contiver alguma cobiça residual pela percepção do
imortal, ela alcançará o terceiro nível da iluminação, chamado de não
retorno. Se, no entanto, a cobiça forem completamente erradicados, todo e
qualquer apego será abandonado completamente, as intenções que fabricam os
khandhas serão deixadas de lado e a mente estará totalmente libertada. Os
tijolos do calçamento se converterão numa pista de decolagem e a mente
decolará.
Para onde? Os autores dos discursos relutam em dizer, até
o ponto de descrever isso como um estado de existência, não existência,
nenhum dos dois ou ambos. Como indicado num dos discursos, a liberdade que
está além dos khandhas também se encontra além do âmbito no qual a linguagem
pode ser empregada de modo apropriado. Existe também o problema real e
prático de que qualquer noção preconcebida dessa liberdade, se agarrada como
um khandha da percepção, poderá facilmente funcionar como um obstáculo para
a sua realização. Por outro lado, existe também a possibilidade de que, se
empregado de forma adequada, esse tipo de khandha da percepção possa
funcionar como uma ajuda no caminho. Assim, os discursos oferecem pistas na
forma de símiles, referindo-se à libertação total como:
Não-formado, o
fim,
Outros trechos mencionam a consciência nessa liberdade –
“sem características ou superfície, sem fim, totalmente luminosa” – como
além dos limites de tempo e espaço, experimentada quando as seis esferas
sensuais deixam de funcionar. Nesse aspecto ela difere do khandha da
consciência, que depende das seis esferas sensuais e que pode ser descrito
através de termos como próximo ou distante, passado, presente ou futuro. A
consciência sem características é dessa forma a consciência da iluminação. E
a liberdade dessa consciência é transportada mesmo quando uma pessoa
iluminada retorna para a consciência comum. Como o Buda disse de si mesmo:
“Liberto,
desassociado e emancipado da forma, o Tathagata permanece
com a consciência irrestrita, Liberto, desassociado e emancipado das
sensações … percepções … formações … consciência … nascimento …
envelhecimento … morte … sofrimento e estresse … impurezas, o Tathagata
permanece com a consciência irrestrita.”
Isso mostra mais uma vez a importância de formular as
questões corretas no que diz respeito aos ensinamentos sobre os khandhas. Se
você empregá-los para definir aquilo que você é como uma pessoa, irá se
restringir sem nenhuma razão. As questões continuarão se acumulando. Mas se
você empregá-los para dar um fim ao sofrimento, as suas questões serão
descartadas e você estará livre. Você nunca mais se apegará aos khandhas e
não precisará mais usá-los para dar fim ao sofrimento criado por você mesmo.
Enquanto você ainda estiver vivo, poderá empregar os khandhas, quando
necessário, para qualquer fim hábil que você considerar adequado. Depois
disso, você estará libertado de todos os usos e necessidades, incluindo a
necessidade de encontrar palavras para descrever essa liberdade para si
mesmo ou para qualquer outra pessoa. |
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Source : http://www.acessoaoinsight.net |
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