A Vida não é apenas Sofrimento |
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"Ele me mostrou
a luminosidade do mundo."
Assim foi como
meu mestre, Ajaan Fuang, certa vez descreveu o seu débito para com o seu
mestre, Ajaan Lee. As suas palavras me pegaram de surpresa. Eu havia
começado a estudar com ele fazia pouco tempo, recém saído da escola onde
havia aprendido que os Budistas sérios adotavam uma visão negativa,
pessimista do mundo. No entanto, aqui se encontrava um homem que havia
entregado a sua vida à prática dos ensinamentos do Buda, falando da
luminosidade do mundo. É claro que por "luminosidade" ele não estava se
referindo aos prazeres das artes, comida, viagens, esportes, vida em família
ou qualquer uma das demais seções do jornal de Domingo. Ele se referia a uma
felicidade mais profunda que vem de dentro. À medida que passei a conhecê-lo
melhor, obtive a percepção de quão profundamente feliz ele era. Ele podia
ser cético em relação a muitas das aparências humanas, mas eu nunca o
descreveria como sendo negativo ou pessimista. "Realista" estaria mais
próximo da verdade. No entanto, durante muito tempo eu não consegui me
livrar do paradoxo que sentia de como o pessimismo dos textos Budistas
podiam se materializar em uma pessoa tão feliz.
Somente quando
comecei a ler os textos mais antigos foi que me dei conta de que aquilo que
eu pensava ser um paradoxo era na verdade uma ironia - a ironia de como o
Budismo, que proporciona uma visão tão positiva do potencial humano para
encontrar a verdadeira felicidade, pôde ser rotulado no Ocidente como
negativo e pessimista.
Você
provavelmente ouviu o rumor de que "a vida é sofrimento" como sendo o
primeiro princípio do Budismo, a primeira nobre verdade do Buda. É um rumor
com boas credenciais, disseminado por acadêmicos de respeito e mestres do
Dhamma, mas apesar disso é um rumor. A verdade sobre as nobres verdades é
muito mais interessante. O Buda ensinou quatro verdades - não uma - a
respeito da vida: existe o sofrimento, existe uma causa para o sofrimento,
existe um fim para o sofrimento e existe um caminho de prática que dá um fim
ao sofrimento. Essas verdades, tomadas em conjunto, estão muito longe de
serem pessimistas. Elas são uma abordagem prática para solucionar um
problema - a maneira como um médico encara uma enfermidade ou um mecânico,
um motor defeituoso. Você identifica um problema e investiga as suas causas.
Depois então você dá um fim ao problema eliminando as suas causas.
O que é especial
na abordagem do Buda é que o problema que ele ataca é o sofrimento humano na
sua totalidade, e a solução que ele oferece é algo que os seres humanos
podem fazer por si mesmos. Da mesma forma como um médico que conhece a cura
infalível para o sarampo não teme o sarampo, o Buda não teme nenhum aspecto
do sofrimento humano. E, tendo experimentado a felicidade que é
completamente não condicionada, ele não teme apontar o sofrimento e estresse
inerentes em lugares que a maioria de nós não consegue ver - nos prazeres
condicionados aos quais nos apegamos. Ele nos ensinou que não devemos negar
esse sofrimento e estresse ou tentar fugir deles, mas, ficar tranqüilos e
enfrentá-los. Examiná-los com cuidado. Dessa forma - entendo-os - podemos
desenraizar as suas causas e dar um fim neles. Totalmente. Quão confiante
você se sente?
Um razoável
número de escritores vêm apontando a confiabilidade básica das quatro nobres
verdades, mas, apesar disso, o rumor do pessimismo Budista persiste. Eu me
pergunto porque. Uma explicação possível é que, ao ir de encontro ao Budismo,
nós temos no subconsciente a esperança de que ele venha a trazer uma solução
para temas que possuem uma longa história na nossa cultura. Ao iniciar com o
sofrimento como a sua primeira verdade, o Buda parece estar oferecendo a sua
opinião acerca de uma questão que possui uma longa história no Ocidente: o
mundo é fundamentalmente bom ou mal?
De acordo com o
Gênesis, a primeira questão que ocorreu a Deus após ele haver terminado a
sua criação foi: ele havia feito um bom trabalho? Então ele olhou para o
mundo e viu que ele era bom. Desde então, as pessoas no Ocidente têm ficado
do lado ou contra Deus nessa sua resposta, mas agindo assim elas têm
afirmado que, em primeiro lugar, a questão vale a pena ser perguntada.
Quando o Theravada - a única forma do Budismo que enfrentou o Cristianismo
quando a Europa colonizou a Ásia - estava buscando formas de enfrentar
aquilo que era visto como a ameaça missionária, os Budistas que haviam sido
educados pelos missionários assumiram que a pergunta era válida e utilizaram
a primeira nobre verdade como uma refutação ao Deus Cristão: vejam como a
vida é miserável, eles diziam, é difícil aceitar o veredicto Divino acerca
da sua obra.
Essa estratégia
de debate pode ter sido favorável naquela época e ainda é fácil encontrar
apologistas Budistas que - ainda vivendo no passado colonial – continuam
utilizando os mesmos argumentos. No entanto, a verdadeira questão é,
primeiramente, se o Buda pretendeu que a primeira nobre verdade fosse uma
resposta à pergunta de Deus e – mais importante - se estamos obtendo o
máximo da primeira nobre verdade encarando-a sob essa perspectiva.
É difícil
imaginar o que você poderia alcançar dizendo que a vida é sofrimento. Você
gastaria o seu tempo argumentando com as pessoas que enxergam mais do que
apenas sofrimento na vida. O próprio Buda diz o mesmo em um dos seus
discursos. Um brâmane chamado Dighanakha o procura e anuncia que ele não
concorda com nada. Essa seria uma perfeita ocasião para o Buda, se ele
quisesse, interceder pela verdade de que a vida é sofrimento. Ao invés
disso, ele ataca essa noção de tomar uma posição sobre se a vida merece
aprovação ou não. Existem três respostas possíveis para essa questão: (1)
nada merece aprovação, (2) tudo merece e (3) algumas coisas merecem e outras
não. Se você tomar qualquer uma dessas três posições, você acabará
discutindo com as pessoas que tomam qualquer uma das outras duas posições. E
o que você ganha com isso? O Buda, então,
instrui Dighanakha a olhar para o seu corpo e sensações como ilustrações da
primeira nobre verdade: eles são estressantes, inconstantes e não merecem
que nos apeguemos a eles como sendo o eu. Dighanakha segue as instruções do
Buda e ao soltar-se do seu apego ao corpo e às sensações, conquista o seu
primeiro vislumbre do Imortal que significa estar totalmente livre do
sofrimento.
A mensagem desta
estória é que tentar responder à pergunta de Deus, fazendo um julgamento do
mundo, é uma perda de tempo. E ela oferece uma melhor utilização para a
primeira nobre verdade: olhando para as coisas não em termos de "mundo" ou "vida",
mas simplesmente apontando o sofrimento para que você possa compreendê-lo,
soltar-se dele e obter a libertação. Ao invés de querer que façamos um
julgamento que englobe tudo - o que, na prática, significa pedir que sejamos
partidários cegos - a primeira nobre verdade nos pede para olhar e ver com
precisão onde se encontra o problema do sofrimento.
Outros discursos
enfatizam que o problema não está no corpo e nas sensações em si mesmos.
Eles mesmos não são o sofrimento. O sofrimento está no apego a eles. Na
definição da primeira nobre verdade o Buda resume todos os tipos de
sofrimento na frase, "os cinco agregados influenciados pelo apego": apego à
forma física (incluindo o corpo), sensações, percepções, formações mentais e
consciência. No entanto, ele nos diz que quando os cinco agregados estão
livres de apego, eles conduzem ao benefício e felicidade por um longo
período.
Portanto, em
resumo, a primeira nobre verdade quer dizer que o apego é sofrimento.
É devido ao apego que a dor física se torna uma dor mental. É devido ao
apego que o envelhecimento, enfermidade e morte causam angústia mental. Como
nos apegamos? Os textos indicam quatro formas: o apego ao desejo sensual, o
apego a idéias, o apego a preceitos e rituais e o apego à ideia da
existência de um eu. É raro que na mente comum exista algum momento sem
alguma forma de apego. Mesmo quando abandonamos uma forma particular de
apego é porque em geral ela está atrapalhando alguma outra forma. Podemos
abandonar uma idéia puritana porque ela interfere com o prazer sensual; ou
um prazer sensual porque ele conflita com uma idéia acerca do que devemos
fazer para ter boa saúde. A nossa idéia sobre quem somos pode se expandir e
contrair dependendo de qual das nossas muitas noções de "eu" está sentindo
mais dor: ela pode se expandir para uma noção cósmica de unidade com todos
os seres, quando nos sentimos confinados pelas limitações do nosso pequeno
complexo de mente e corpo; ela pode contrair-se numa pequena concha quando
sentimos a dor que surge da identificação com um cosmo repleto de crueldade,
negligência e estupidez. E então chegamos ao ponto em que a insignificância
do nosso eu finito se torna novamente opressiva.
Portanto,
descobrimos que a nossa mente salta de apego em apego tal como uma semente
de mostarda em uma frigideira quente. Quando nos damos conta disso,
naturalmente procuramos uma forma de escapar. E é nesse ponto que se torna
tão importante que a primeira nobre verdade não diga que "a vida é
sofrimento", pois, se a vida fosse sofrimento, onde poderíamos encontrar um
fim para o sofrimento? Não nos restaria nada além de morte e aniquilação.
Mas, quando na verdade o apego é o sofrimento, nós simplesmente temos que
olhar para ver com clareza onde está o apego e aprender a não nos apegarmos. É nesse ponto
que nos deparamos com a grande habilidade do Buda como estrategista: Ele nos
diz que tomemos os apegos que devemos abandonar e que os transformemos no
caminho para o seu abandono. Necessitaremos de uma certa dose de prazer
sensual - em termos de comida, roupas e moradia adequadas - para
encontrarmos a força para superar o prazer sensual. Necessitaremos do
Entendimento Correto para superar o apego a idéias, e das regras dos cinco
preceitos éticos e da prática da meditação para superar o apego a preceitos
e rituais. Sustentando tudo isso, precisaremos de uma forte noção de auto-responsabilidade
para superar o apego à ideia da existência de um eu.
Assim, nós
começamos a trilhar o caminho para dar fim ao sofrimento sem tentar derrubar
nossos apegos imediatamente, mas aprendendo a nos apegar mais
estrategicamente. Em outras palavras, começamos do ponto onde nos
encontramos e utilizamos da melhor maneira possível os hábitos que já temos.
Progredimos ao longo do caminho à medida que encontramos mais e mais coisas
de melhor qualidade às quais possamos nos apegar e maneiras mais hábeis de
nos apegarmos; da mesma maneira que você usa uma escada para subir no
telhado: agarra um degrau mais alto para poder soltar o degrau mais baixo e
depois agarra um outro degrau ainda mais alto. À medida que os degraus se
distanciam do chão, você perceberá que a mente ficará cada vez mais clara e
poderá ver com precisão onde estão os seus apegos. Ela obterá uma noção mais
evidente sobre qual parte daquilo que é experimentado pertence a qual nobre
verdade e o que deve ser feito em relação a ela: as partes que são
sofrimento devem ser compreendidas; as partes que causam o sofrimento -
desejo e ignorância - devem ser abandonadas; as partes que constituem o
caminho para o fim do sofrimento devem ser desenvolvidas; e as partes que
pertencem ao fim do sofrimento devem ser realizadas. Isso ajudará você a
subir cada vez mais alto na escada, até chegar ao telhado com segurança. E
nesse momento, você poderá finalmente se soltar da escada e libertar-se
completamente.
Potanto, a
verdadeira questão que enfrentamos não é a pergunta de Deus, julgando a sua
habilidade em criar a vida no mundo. É a nossa questão: que tão
habilidosos somos em lidar com as vicissitudes da vida? Estamos nos apegando
de uma forma que apenas serve para dar continuidade ao ciclo de sofrimento
ou estamos aprendendo a nos apegar de maneira a reduzir o sofrimento para
que, no final das contas, possamos nos emancipar e não precisemos mais nos
apegar . Se lidarmos com a vida armados com as quatro nobres verdades,
compreendendo que a vida contém ambos, o sofrimento e o fim do sofrimento,
haverá esperança: esperança de que seremos capazes de identificar quais
partes da vida pertencem a qual verdade; esperança de que algum dia, nesta
vida, descobriremos a luminosidade ao ponto de podermos concordar com o
Buda, "Ah. Sim. Isto é o fim do sofrimento e estresse".
Nota:
Veja também o MN
141 – Saccavibhanga Sutta e o
MN 9 – Sammaditthi
Sutta. |
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Source : http://www.acessoaoinsight.net |
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